1° ATO

"A ULTIMA CHAVE"

Obra teatral em 2 atos

escrita por Zé Peixoto

É expressamente proibida qualquer tipo de cópia e publicação, total ou parcial,  deste conteúdo, sem a previa autorização do autor ou dos detentores de seus direitos patrimoniais de autor.

Zé Peixoto, ©all rights reserved, 2020

A

Última

Chave

 (PRIMEIRO ATO)

A sala de visitas de um antigo sobrado, conjugada à sala de jantar, com uma escada que leva aos quartos, uma entrada para o porão, a saída para a cozinha, uma sólida porta social, dois janelões com venezianas de madeira e uma saída lateral onde EUTÁLIA pega e entrega as encomendas. Todas as portas e janelas estão absolutamente trancadas com travas de ferro. Móveis velhos, mas tratados com dedicação. Um piano, uma mesa de jantar de seis lugares, um armário trancado à chave, um sofá diante de um aparelho de televisão preto e branco, um ventilador de pé sempre ligado, uma máquina de costura, um manequim de provas e cadeiras dispersas. Na parede uma foto de rosto dos pais, a ceia de Cristo e quadros de gosto duvidoso.

OLGA, EUTÁLIA e BERTA vestem-se e preocupam-se com a aparência de quem não quer ceder completamente ao descaso.

CENA 1

BERTA está limpando CUIDADOSAMENTE o piano com uma flanela. EUTÁLIA aparece na entrada lateral DA SALA carregando TRÊS pesadas sacolas .

EUTÁLIA

Rápido! Não está vendo? Preciso de ajuda.

BERTA VAI ATÉ EUTÁLIA E PEGA DUAS SACOLAS.

BERTA

OLGA! Desce depressa!

OLGA DESCE APRESSADA A ESCADA TATEANDO O CORRIMÃO . ELA PEGA A  OUTRA SACOLA COM EUTÁLIA, QUE TRANCA A PORTA À CHAVE E RECOLOCA O TRAVESSÃO DE FERRO.

EUTÁLIA

Em cima da mesa!

EUTÁLIA ABRE O ARMÁRIO COM UMA DAS CHAVES DO MOLHO QUE CARREGA NO BOLSO. PEGA UM BLOCO DE NOTAS E VOLTA A TRANCAR A PORTA DO ARMÁRIO.  

EUTÁLIA

Não se deve confiar em mais ninguém. Pode ter faltado alguma coisa.

BERTA

As sacolas chegam com cheiro de rua.

EUTÁLIA

(folheando o caderno) Se eu não tomar nota de tudo...  A comida primeiro!

OLGA E BERTA COMEÇAM A TIRAR AS COISAS DE DENTRO DAS SACOLAS.

BERTA

Arroz. Feijão. Batatas...

OLGA

Óleo. Açúcar. Nosso chá. Dois pacotes de biscoitos. Alho.

BERTA

Dois pacotes de macarrão. Cebola. Cenoura. Uma dúzia de ovos. Dois litros de  leite...

EUTÁLIA

Pra que tanta pressa? Não consigo conferir direito com vocês correndo assim. Falta alguma coisa e ficam feito duas infelizes se lamentando pelos cantos.

OLGA

Os pimentões vieram bonitos.

BERTA

As carnes! Vou fazer um bom refogado. Bastante cebola, alho, pimentão. Carne com batatas cozidas.

OLGA

(para BERTA)

Você quando era pequena, chorava sempre que mamãe colocava pimentões na comida. Ia separando as tirinhas verdes no prato. Mamãe brincava. Dizia que pimentões eram narizes verdes. Se não comesse ficava com nariz de pimentão. Então você ria. Se acalmava aos poucos. No final, esquecia e raspava até o fundo do prato.

EUTÁLIA

Posso esperar. Não quero atrapalhar ninguém.

OLGA

Desculpa! Você tem razão! Couve. O pão de forma.

EUTÁLIA

Acabou?

BERTA

Faltou o sal.

EUTÁLIA

Que sal?  Não botei sal nenhum na lista.

BERTA

O sal está quase acabando. Será  que esqueci do sal?

EUTÁLIA

O que vocês querem mais? Já não basta eu organizar tudo nessa casa? Eu só peço o mínimo. Você não consegue se concentrar em nada, BERTA.

BERTA

Mas o sal...

EUTÁLIA

Que diferença isso faz agora, sua estúpida! O sal vai ter que dar. (pausa)  Limpeza!

BERTA

Álcool. Sapóleo. Aqui! O meu sabão. Duas barras. Papel. Dois sabonetes. Precisava de um pano de chão novo. O do uso anda um trapo.

EUTÁLIA

Não tem nenhum pedaço de pano que sirva?

BERTA

Não é a mesma coisa!

EUTÁLIA

Vivem queimando dinheiro.

BERTA

EUTÁLIA, eu sei...

EUTÁLIA

O dinheiro mal dá pra pagar as contas! É muito difícil improvisar um pano.

BERTA? (tom)  Esse pacote menor! Devem ser as coisas de mamãe.

OLGA

Os remédios. Algodão e gaze. A tesoura amolada.

BERTA

As bandagens de gaze... Imagino a dor. Os pulsos e os tornozelos presos em carne viva.

EUTÁLIA

Acabou? Pronto! Tudo na pia da cozinha! Vou acabar de conferir as contas. Preciso tomar nota de umas coisas.

BERTA E OLGA ESTÃO RECOLHENDO OS MANTIMENTOS  QUANDO OLGA SE DISTRAI E DEIXA A CAIXA DE OVOS CAIR EM CIMA DA MESA.

EUTÁLIA

Inferno! Vocês vêm? Não dá pra deixar nada com vocês!

OLGA INSPECIONA A CAIXA DOS OVOS.

OLGA

Escapuliu. Quebraram só três.

EUTÁLIA

Só três...Ótimo! Também não está vendo que tem ovo escorrendo na mesa?

BERTA PEGA A FLANELA E COMEÇA A LIMPAR OS OVOS NA MESA.

EUTÁLIA

Eu não suporto vocês me olhando desse jeito! Estão esperando o que ? Na volta, uma das duas pega um pano. Limpo! Não quero essa mesa emporcalhada.

OLGA E BERTA SAEM COM A METADE DOS MANTIMENTOS.

EUTÁLIA

Estorvo! Não me servem pra nada. Agora as duas lá de cochichos. Sempre as duas. Não vão mudar nunca. Desmioladas! 

BERTA E OLGA ENTRAM PARA PEGAR O RESTO DOS MANTIMENTOS.

OLGA

Fico mais tranquila com a despensa cheia.

BERTA

Vou aproveitar os três ovos pra fazer um bolo!

OLGA

A receita de pão-de-ló. Mamãe adorava com chá.

BERTA

Nem esfriava. De longe, o cheiro dava água na boca .

BERTA E OLGA SAEM COM O RESTO DAS COISAS.

EUTÁLIA

Sonhos! Estou farta! A vida inteira  de futricos. E comigo  esse monte de contas. (anotando do bloquinho)  Gás... Luz. Esses ventiladores sempre ligados. O aluguel... Comida. Os calmantes... Que absurdo! Tudo pela hora da morte.

OLGA E BERTA VOLTAM. BERTA SEGURA UM PEDAÇO DE PANO.

BERTA

O pano! Vi o sal também.

OLGA

Graças a Deus! Deve dar.

BERTA COMEÇA LIMPAR A MESA COM O PANO.

EUTÁLIA

OLGA! O lençol!

OLGA PEGA UM LENÇOL NUMA GAVETA. EUTÁLIA TRANCA OS REMÉDIOS E O CADERNO NO ARMÁRIO. BERTA ACABA DE LIMPAR A MESA E OLGA ESTENDE O LENÇOL EM CIMA.

EUTÁLIA

Um pedaço de tecido manchado e acabo perdendo a cliente. Bem ou mal, é o melhor que eu arranjei.

OLGA

O que será que ela mandou dessa vez?

BERTA

Consegue sempre me deixar curiosa.

EUTÁLIA COMEÇA A ABRIR O PACOTE.

EUTÁLIA
Que diferença faz? É rica. Só mais um corte. Mulheres como nós não nasceram pra tecidos finos.

EUTÁLIA ABRE SOBRE A MESA UM CORTE DE MOUSSELINE DE SEDA, EM TOM CLARO E DESENHO FLORAL.

BERTA
Que musseline linda!

EUTÁLIA

Vamos, OLGA! Quero medir isso logo! As mãos! Estão limpas?

OLGA SEGURA NUMA PONTA DO TECIDO ENQUANTO EUTÁLIA MEDE A PEÇA COM UMA FITA MÉTRICA.

EUTÁLIA

Um e quarenta de largura. Nessa ponta! Aqui! Um metro e meio... três e cinquenta.

BERTA OLHA O MODELO NUM RECORTE DE REVISTA.

BERTA

Que sonho! Feitio francês.

EUTÁLIA PEGA RISPIDAMENTE  O RECORTE DAS MÃOS DE BERTA.

EUTÁLIA

Me dá logo isso! Cada vez mais complicados! O drapeado do busto vai gastar muito. Todo enviesado. Mandou a conta justa. Não custava meio metro a mais. Quanto mais dinheiro, mais usura.

BERTA

Cada semana um vestido novo. Tanto gosto! É uma mulher de classe.

OLGA

Mulher de político não pode se apresentar assim, de qualquer jeito. Vivem impecáveis. Coquetéis, jantares, teatros, recepções  oficiais...

BERTA

Os salões... Mulheres desfilando numa elegância! Penteadas, pintadas que nem essas artista de cinema. Os perfumes, os braceletes de brilhante, os colares...

EUTÁLIA
Deus queira que esse político continue roubando pra gastar com a futilidade da mulher.

OLGA

Não usa o nome de Deus em vão, EUTÁLIA! Tanta miséria no mundo... Não fazem nada pelos pobres. A cobiça dessa gente é que mata. Só pensam no próprio poder.

EUTÁLIA

E o que isso me interessa? Foi com uma dondoca de político que arranjei o serviço, não foi? Pensamento humanitário... Isso não paga minha conta no fim do mês.

OLGA
Deus sabe que você diz isso da boca pra fora.

EUTÁLIA ABRE UM OUTRO PACOTE MENOR.

BERTA

Mandou outro corte!

OLGA

Crepe georgete de seda! Engraçado! Usa sempre tecidos tão leves, de cores tão suaves.  E agora esse crepe preto.

BERTA

Veio sem feitio.

ENQUANTO EUTÁLIA E OLGA MEDEM O TECIDO PRETO, BERTA ABRE O CORTE DE MUSSELINE, SEM QUE AS DUAS PERCEBAM, E O AJEITA MODELANDO SOBRE O CORPO .

OLGA

O preto é eterno. A elegância e a morte pedem preto.

EUTÁLIA

Deve ter-se enganado. Manda o feitio depois. (tom) O estado desses botões!  Ninguém forra mais  botões como antigamente. A linha é do mesmo tom, BERTA?

BERTA

A linha...?

EUTÁLIA DESCOBRE BERTA COM O TECIDO.

EUTÁLIA

Mas o que você está fazendo? Ficou louca?

BERTA

Eu só...

EUTÁLIA

Não tem esse direito! Dá logo isso! Nunca mais se atreva! Ouviu?

BERTA

Não queria...

EUTÁLIA

A linha, BERTA!

BERTA
É igual, EUTÁLIA! Igualzinha!

EUTÁLIA

Chega de palhaçada! Quero isso tudo dobrado! Arrumem logo essa bagunça! Vou trancar a comida na cozinha.

BERTA
E o corte preto?

EUTÁLIA

Fica guardado comigo! Com a cabeça de vocês... Acabam me estragando.  Inventam de enfiar em qualquer lugar. Depois, ficam atrás feito duas malucas sem saber aonde.

EUTÁLIA TRANCA O CORTE PRETO NO ARMÁRIO E VAI PARA A COZINHA. BERTA E OLGA  ARRUMAM A SALA.

CENA 2

EUTÁLIA MODELA A MOUSSELINE NO MANEQUIM DE PROVA. OLGA CORTA O TECIDO NA MESA ENXERGANDO COM DIFICULDADE.  BERTA PASSA COSTURA NA MÁQUINA.

EUTÁLIA

Preciso de mais alfinetes!

BERTA

Deixa, OLGA! Eu levo. Não vai parar o corte no meio.

BERTA LEVA OS ALFINETES PARA EUTÁLIA.

OLGA

Bendita hora que mamãe nos passou esse ofício! O que ia ser de nós?

BERTA AJEITA NA PAREDE O QUADRO COM A FOTO DOS PAIS.

BERTA

Aprendemos brincando. Lembram? Era sobrar um pedacinho de pano e  mamãe vinha dizendo que as bonecas precisavam de roupa nova. “Muito bem, minhas filhas! É de cedo que se começa! As três acabam abrindo um ateliê de alta costura.”

OLGA
Mamãe sempre teve coragem. Passou por muita coisa nessa vida. Vivia me perguntando onde ela achava tanta força.

BERTA

Você herdou isso de mamãe, EUTÁLIA. 

EUTÁLIA

Ninguém é melhor que ninguém. Começo minhas coisas e vou até o final. Não sou como vocês!

BERTA

As mãos de mamãe ficaram pra você.

OLGA

E tem cabeça ainda pra fazer bons negócios. É verdade! Uma mulher rica. Toda semana um vestido. Foi Deus quem te ajudou a encontrar esse serviço, minha irmã.

BERTA CHEGA PERTO DA PORTA DO PORÃO.

BERTA

Só assim mamãe pôde ficar junto da gente. Tanto sofrimento... Ela precisa muito de nós três aqui ao lado dela.

EUTÁLIA

Foi o remédio. Não tive outra saída. Mamãe ia acabar internada  num sanatório.

OLGA

Agradeço à Nossa Senhora da Aparecida nas minhas orações. Foi ela quem te iluminou.

BERTA

Mamãe num hospício. Abandonada no meio da imundice. Tratam os loucos como animais.

EUTÁLIA

Na vida tudo é questão de sorte! Não me perguntou nada. Aceitou sem condições. No começo fiquei com medo.  Podia ser que achasse alguma coisa de estranho nisso tudo. Resolvi não cobrar muito nos feitios. Depois me arrependi. Podia ter conseguido mais pelo trabalho.

OLGA

Não, EUTÁLIA! Foi mesmo muita sorte! Agradeço à Deus! É perigoso acreditar nas pessoas. Podem descobrir porque não saímos nunca. Depois se aproveitam. No mundo, hoje, a maldade vive esperando pelos fracos.

BERTA
Esses crimes horríveis que mostram na televisão. Mulheres feito nós são presas fáceis.

EUTÁLIA
Me tratam como se eu fosse estúpida. É claro que não entrei em detalhes.

BERTA

Mas ficou curiosa, não ficou? Uma mulher sempre sabe quando existe alguma coisa por trás.

OLGA

Por delicadeza que fosse! Devia ao menos ter perguntado pela saúde da mamãe.

EUTÁLIA

Não sou igual à vocês. Falam demais. Mal conhecem alguém e saem abrindo a boca. Eu nunca diria nada. Ninguém encara um assunto desses como normal. Se eu entrasse em detalhes.... Perdia o serviço.

OLGA

Foi  melhor assim. Você agiu certo, EUTÁLIA. Vamos resolver do nosso jeito. Esses futriqueiros de cochichos por aí!  Não vão mais falar da nossa desgraça.

EUTÁLIA
Já posso passar costura nessa manga. Que horas são?

BERTA

Quase quatro!

EUTÁLIA
O café, BERTA!  Você anda desperdiçando muito pó! Ontem fez um exagero. Dava quase pra quase dois dias. Não suporto café requentado! É só ver a despensa cheia e você começa a jogar comida fora.

BERTA

É o tempo da água ferver.

BERTA SAI PARA A COZINHA.

EUTÁLIA

BERTA não se dá conta. É incapaz de perceber. Você também não colabora, OLGA. Ao invés de ficar do meu lado, vive passando a mão na cabeça dela.

OLGA

Você exige demais das pessoas, EUTÁLIA. A vida toda foi forte.  Tem coragem pra enfrentar os problemas. Encontra solução rápida pra tudo.

EUTÁLIA

É uma sonsa! Isso é o que ela é! Aproveitou tudo o que podia do papai.

OLGA

Deixa nosso pai descansando em paz...!

EUTÁLIA

É melhor esquecer, não é? Pois eu não me esqueço de nada. Ou você acha, que ele fez o que fez porque ela era uma santinha?

 

OLGA

Você julga demais as pessoas.

EUTÁLIA

Ela se aproveitou da fraqueza dele por mulher. Era mais fácil tendo em casa. Não precisava ficar bêbado procurando vagabunda na rua.

OLGA ENTREGA UM PEDAÇO DO TECIDO À EUTÁLIA, QUE O PRENDE AO VESTIDO COM ALFINETES.

OLGA

Não quero mais falar sobre isso!

EUTÁLIA

Agora fica bancando a santa! Esse tom de arrependida me irrita. E você passando a mão na cabeça dela.

OLGA

Ela acaba escutando!

EUTÁLIA

E daí? Vai ficar agora como a mamãe? Guardar a podridão da família, pra quê?  Ela nunca prestou. Aqueles vestidos curtos. As coxas tentando o papai. Sentava no colo dele feito um anjo. 

OLGA

Chega, EUTÁLIA!

OLGA COMEÇA A RECOLHER AS COISAS DE COSTURA EM CIMA DA MESA.

EUTÁLIA

Os peitos ficando duros. Tanta indecência! Aqueles decotes agachados calçando as sandálias dele quando ele voltava da repartição.

OLGA

Era uma menina. Não tinha maldade. Não passava pela cabeça dela que aquilo tudo fosse acontecer.

EUTÁLIA

É claro que você sempre vai defender a BERTA. Você presta tanto quanto ela.  Você também não é grande coisa, não é OLGA? Essa mania de Deus...

OLGA

Foi com ele que eu encontrei forças. É minha fé. Você também precisava se entregar à Jesus.

EUTÁLIA

Você abusa de Deus, OLGA! Não pode seguir sozinha, não é? É essa culpa que você carrega!  Essa imundice que você sente grudada no teu corpo.

OLGA

Você não mede a crueldade das tuas palavras. A verdade não é mais mistério pra ninguém há muito tempo. Papai e mamãe nos criaram da mesma forma. Lembra? Mas você nunca deixou nada escapar. Tão diferente de nós duas. Eu e BERTA, duas tolas. Depois que ele morreu é que você...

EUTÁLIA

Anda! Fala!

OLGA ESTICA A TOALHA NA MESA.

OLGA

Eu não quero tocar mais nesse assunto.

EUTÁLIA
Vocês também podiam. Não tiveram homem lá fora porque não quiseram. Vocês não! Resolveram esconder tudo atrás da saudade. Lágrimas... Eu não tive tempo pra chorar. Vocês choravam por mim.

OLGA

A tua frieza me dá medo!

EUTÁLIA
Eu tive homem sim! Vários! Foi na cama que eu consegui forças pra brigar contra tudo de errado que eu sempre vi nessa casa. O que é que adiantou? Nada! Eu estou aqui, não estou? Igual a vocês.  Igual à isso tudo. Eu tenho que lutar muito pra acordar todo dia aqui trancada, OLGA. Achar forças pra aguentar de cabeça em pé esse destino nojento.

BERTA ENTRA COM O LANCHE.

BERTA

Prontinho! Trouxe geleia de laranja e os biscoitos frescos.

OLGA

Vem, EUTÁLIA!

EUTÁLIA

Vão comendo! Ainda falta passar uma costura.

BERTA

Está quentinho como você gosta.

EUTÁLIA
Você ficou surda, idiota? Já disse! Podem ir começando.

BERTA E OLGA COMEÇAM A SE SERVIR.

BERTA

Como deve estar o tempo lá fora? Se ao menos a gente pudesse abrir um pouco essas janelas.

OLGA

Sinto falta de olhar o céu.

BERTA

Assim que mamãe ficar boa, nossa vida vai voltar ao normal. O céu, o cheiro do peixe na feira, as mães correndo atrás dos filhos pela pracinha, a missa do domingo...

OLGA

Uma coisa simples. Olhar o céu.  Faz tanta diferença! Descobri o valor... Coisas tão pequenas.

EUTÁLIA

Você sempre adorou fazer papel de vítima. Liberdade não existe! Todo mundo vive preso à alguma coisa. Que estória agora é essa de sentir falta do céu?

BERTA

Você não pode falar desse jeito! OLGA está ficando quase cega, EUTÁLIA.

EUTÁLIA

A nossa prisão é bem maior.

OLGA

É você quem pensa, EUTÁLIA! Aprendi a enxergar a vida com outros olhos. Não vou carregar minha doença como um castigo. Mamãe é o mais importante. Merece paz.

EUTÁLIA

Vocês me obrigam a suportar esse peso (mostra o molho de chaves).

OLGA

Você não tem direito de desconfiar assim de nós duas. Ninguém vai fugir. Ninguém vai desistir de nada.

EUTÁLIA

Só pode-se desistir daquilo que se acredita. Vocês não são capazes disso. Não acreditam nem em si mesmas. Nosso problema é  pior. Está na mão do destino. Presas por causa da vergonha!

BERTA

Vem logo, EUTÁLIA! O chá está ficando frio.

EUTÁLIA COMEÇA A SERVIR SEU CHÁ. OUVEM-SE GRUNHIDOS VINDOS DO PORÃO. EUTÁLIA FAZ SINAL PEDINDO SILÊNCIO.

(PAUSA) (OS GRITOS DA MÃE)

BERTA

Começou de novo!

OLGA

Meu Deus do céu!

EUTÁLIA

(para BERTA) A seringa! Na cozinha, sua estúpida! Rápido! A seringa... Na cozinha, BERTA!

BERTA SAI CORRENDO PARA A COZINHA. EUTÁLIA ABRE O ARMÁRIO E PEGA UMA CAIXA DE ONDE TIRA UMA AMPOLA.

EUTÁLIA

(gritando) Rápido, sua lesma!

BERTA ENTRA COM A SERINGA E A ENTREGA À EUTÁLIA, QUE VAI IMEDIATAMENTE PARA O PORÃO.

EUTÁLIA

Ela acaba se soltando!

EUTÁLIA DESCE AO PORÃO.

OLGA

Quando isso vai acabar, minha Nossa Senhora?

BERTA

Tenho medo que mamãe nunca fique boa. Muito medo. Tenho muito medo. Nós o resto da vida aqui trancadas. Assim que nem ela.

OLGA

Meu terço... Onde está meu terço?

BERTA

Pobre da EUTÁLIA! Tem razão! Não prestamos pra nada. Deve ser horrível ver mamãe assim. Que pesadelo! Por isso EUTÁLIA sofre tanto. E nós duas aqui.

OLGA

Não adianta se cobrar nada agora! Vem comigo agradecer à Deus pela força de EUTÁLIA. “Creio em Deus pai todo poderoso, criador do Céu e da Terra...”

BERTA

Pára com essa reza! Isso me assusta! Essas orações não vão resolver nada!

OLGA

Não posso ouvir esses gritos. Não percebe o horror? Não é um sonho. É real.

BERTA

Esses gritos não são dela. Não é humano! Mamãe não pode ter acabado assim. Esse animal urrando lá embaixo não é minha mãe.

OLGA

A vida nos deu essa cruz.

BERTA

Por que esse castigo? Eu nunca quis roubar o papai dela. Ele é que me procurava!

OLGA

Minha criança! Minha pobre criança!

BERTA
Você acredita em mim, não acredita, OLGA? Eu não sabia que era pecado. Ele me dizia coisas tão lindas.

OLGA

Eu sei.

BERTA

Esses gritos ecoam na minha cabeça.

EUTÁLIA SAI DO PORÃO. VAI ATÉ O ARMÁRIO E PEGA OUTRA AMPOLA.

OLGA

Por que ela não parou?

EUTÁLIA

Preciso de outra!

BERTA
Eu não agüento mais esses gritos! Faz qualquer coisa, EUTÁLIA!

OLGA
(para BERTA) Calma, meu amor! Meu Deus! Livrai-nos desse sacrifício!

BERTA
EUTÁLIA vai fazer mamãe dormir como um anjo. Não vai, OLGA?

EUTÁLIA

Um anjo... Eu devia largar isso tudo na mão de vocês. Deixar vocês sozinhas resolvendo aquilo lá embaixo.

OLGA

Outra injeção! Não é muito forte?

EUTÁLIA

E essa crise não é forte? Ela acaba se soltando. Começa tudo de novo. Já se esqueceram? Mamãe andando nua pelo bairro. Se masturbando como uma demente em plena luz do dia.

OLGA

Que horror, meu Deus! Nunca mais repete isso!

EUTÁLIA ESTENDE A MÃO COM A SERINGA PARA AS IRMÃS.

EUTÁLIA

Então? Alguém vai resolver pra mim dessa vez ? (mostrando a seringa) Aqui! Esse é o único remédio que consegue curar a nossa vergonha.

EUTÁLIA ENTRA NOVAMENTE NO PORÃO.

OLGA

Não se preocupa! Ela sabe o que está fazendo.

BERTA

Não é justo o que ela disse. Nunca tive vergonha de mamãe.

OLGA

Eu sei.

BERTA

EUTÁLIA sempre quis me separar de você. Morre de inveja de nós duas juntas.

OLGA

Ela fica fora de si vendo isso tudo acontecer com mamãe. Não quis dizer aquilo. (pausa) Acalmou! Os gritos pararam. Graças a Deus!

BERTA

Pensei que não ia ter fim. Talvez um dia nunca mais acabe.

EUTÁLIA VOLTA PARA A SALA.

EUTÁLIA

Dormiu. Uma fração de segundos. Mergulhou num sono profundo.  Mais tarde preciso trocar os curativos. Os punhos sangraram.

BERTA

Queria tanto ver minha mãe!

OLGA

Não pensa nisso agora, BERTA!

BERTA

Estão ouvindo? O cachorro continua. Alguma coisa está acontecendo de errado lá embaixo. Nunca é assim. Os grunhidos sempre param quando mamãe se acalma.

EUTÁLIA

O animal parece que está doente. Ficou imóvel. O olhar fixo em mamãe. Não tocou desde ontem na comida e na água.

BERTA

Vai ver ficou doente igual à mamãe. Os bichos acabam como os donos.

EUTÁLIA

Acho que não vai ter jeito.

OLGA

(surpresa) Matar o cachorro?

EUTÁLIA

Você está insinuando o que com esse tom?

OLGA

Nada!

BERTA

Mamãe vai ficar mais sozinha ainda. Pode piorar.

EUTÁLIA

Mamãe pode acabar morrendo por causa dele!

OLGA

E o corpo?

EUTÁLIA

A adega vazia. Ponho o corpo trancado lá dentro. Fecho as saídas de ar com uns pedaços de pano. Quando mamãe ficar boa arranjo um jeito de me livrar dele.

OLGA
Meu Deus! Isso já não basta? Matar o cachorro...

BERTA

Nunca saiu um minuto do lado dela. Agora  tem que morrer.

EUTÁLIA
É melhor esperar mais um pouco.

OLGA
Os grunhidos não param!

BERTA

Sempre gostei de bichos. Desde menina.  Puxei a papai. São fiéis. Não são como as pessoas.

EUTÁLIA

Não imaginam a maneira dele olhar. Olhos de demônio!  Pode acabar arrebentando a corda. Avança em mamãe dormindo.

BERTA

E ela?

EUTÁLIA

Parecia um monstro. Explodia o corpo todo. Contraía os músculos. Cerrava os dentes. Os gritos pareciam que saiam do chão, das paredes...

OLGA

É medonho! O peso da minha culpa é cada vez maior. Você sofrendo tanto assim.

BERTA

OLGA tem razão. É injusto. Você passando por esse horror e nós duas aqui.

EUTÁLIA

Ela precisa de nós três juntas! O resto não me importa. Tenho força pra ir levando. Mamãe vai ficar boa. Eu prometo!

CENA 3

EUTÁLIA, BERTA E OLGA ESTÃO JANTANDO À MESA.

BERTA

Ouvi  tiros enquanto fazia o jantar.

OLGA

Essa noite pareceram mais fortes.

BERTA

Fico com medo. Um dia podem resolver entrar aqui.

OLGA

Rezo muito.

BERTA

Se pelo menos a gente tivesse uma arma...

OLGA

Um revólver aqui? Papai nunca quis arma em casa.

BERTA

As facas da cozinha...

EUTÁLIA

Até no jantar? Por que essa estupidez agora? Não sou obrigada a ficar escutando essas asneiras na hora comida!

BERTA

Podem forçar uma porta. E nós aqui sozinhas.

OLGA

Tive um sonho. Acho que por causa dos tiros.  Entravam aqui e nos amordaçavam presas nessas cadeiras. Soltavam o cachorro. Ele ficava rondando a mesa e nos lambia os calcanhares. Depois mamãe apareceu nua. Servia-nos comida. Via que estávamos presas, amordaçadas. Mas insistia que comêssemos. Então sentou-se ao piano. Tocou uma Sonata de Chopin. Chorava muito. Acordei em pânico.

BERTA

Não consigo mais sonhar. Passo as noites todas em claro. As vezes levanto assustada. Ouço vozes, passos rugindo na madeira. Choro em silêncio. Não quero que me ouçam.

OLGA

A situação lá fora está ficando cada vez pior.

EUTÁLIA

É a miséria! Um homem com fome é capaz de qualquer coisa. 

OLGA

Agradeço sempre à Deus por nossa mesa farta. Tanta fome... Famílias inteiras vivendo por aí no abandono. Crianças largadas no mundo como bichos... O mundo se esqueceu das palavras de Cristo.

BERTA

Alguns parecem felizes. Mais felizes que nós.

EUTÁLIA

Felizes? Deixa de ser tola! Você nunca prestou atenção no sorriso dessa gente. Esses miseráveis não vivem. Você pode ainda escolher um caminho. Eles não! São lixo!

BERTA

O melhor é ficar calada, não é, EUTÁLIA? Você tem razão... Sou mesmo uma estúpida . Vivo sonhando. Não sobrou nada pra mim além da máquina e das panelas. Meus pensamentos se perdem nos pontos da agulha. Meu rosto se confunde nas panelas areadas.

OLGA

BERTA está chorando! Por que você faz isso, EUTÁLIA?

EUTÁLIA

Não quis ofender ninguém. Foi difícil enfrentar hoje aquilo tudo. Estou cansada. É como se eu tivesse que nadar contra a correnteza de um rio.

BERTA

Fico com medo de acabar igual à mamãe. Enxerguei o mundo sempre de um jeito diferente. As meninas na escola... Caçoavam de mim. Eu num canto, sempre chorando porque sonhava demais.

OLGA

Não lembra disso agora! Cada um tem seu feitio.

BERTA

Continua tudo vivo na minha cabeça. Aquele lugar frio. Mamãe me olhando como se eu fosse uma assassina. Um açougue. Eu nunca quis aquele filho dele. Filho e irmão ao mesmo tempo. Quando arrancaram aquele mostro de mim pensei em matar o papai.

EUTÁLIA

Já pedi desculpas. O que vocês querem? Que eu fique de joelhos?

BERTA

Não posso errar nunca mais. OLGA é que está certa!  Não há mais tempo pra se consertar nada.

OLGA

Não vai comer o resto, BERTA?

BERTA

Perdi a fome.

EUTÁLIA

Vai deixar isso tudo no prato?

OLGA

Insiste um pouco, meu anjo!

BERTA

Não consigo.

EUTÁLIA

Não quer comer? Isso é problema dela! Dou o que sobrar pro cachorro.

OLGA COLOCA AS SOBRAS DE COMIDA NUM PRATO QUE EUTÁLIA LEVA PARA O PORÃO. OLGA LEVA A LOUÇA PARA A COZINHA. BERTA TIRA A TOALHA, COLOCA O LENÇOL EM CIMA DA MESA E COMEÇA A FALAR COM O PAI IMAGINÁRIO.

BERTA

Você não podia ter me abandonado aqui sozinha. Sinto tanta saudade. Nenhuma delas me ama assim como você. OLGA ontem entrou no meu quarto enquanto eu dormia. Começou a me tocar daquele mesmo jeito de quando éramos meninas. Eu fingi que estava dormindo. Pedia pra você me proteger enquanto ela botava os dedos dentro de mim. Esperei que ela saísse e vomitei o jantar todo. Nunca mais consegui sentir aquilo que você me dava. Nunca mais papai.

OLGA VOLTA PARA A SALA.

OLGA

Pensando sozinha, meu anjo?

BERTA

Eu?

BERTA SOBE A ESCADA E VAI  PARA O QUARTO. EUTÁLIA VOLTA DO PORÃO.

EUTÁLIA

Está dormindo. Parece tranquila. O cachorro não tocou em nada. Começou a babar.

OLGA

Raiva!

EUTÁLIA

Vou esperar até amanhã. É melhor por enquanto não dizer nada à BERTA.

OLGA

Como você vai fazer?

EUTÁLIA

Resolvo depois. Já são oito horas. A televisão! Já deve ter começado.

EUTÁLIA LIGA A TEVÊ. ELA E OLGA SENTAM-SE NA FRENTE DA TELEVISÃO FAZENDO ACABAMENTOS DE COSTURA.

MULHER (OFF)

O que você quer aqui outra vez?

HOMEM (OFF)

Preciso conversar com você. Coisa rápida!

MULHER (OFF)

Já conheço essa estória, Cláudio. Acabou!

HOMEM (OFF)

É sobre as crianças. Falei com o advogado. Se você não entrar num acordo, acaba sem nada. Tiro as crianças de você.

MULHER (OFF)

É isso que você quer então, Cláudio? Tudo bem! Eu não me importo. Não faz mais diferença. Você quer ficar com os meninos? Pois então fica!

HOMEM (OFF)

Sempre soube que tipo de criatura você era. Mas nunca imaginei que chegasse a esse ponto. Como você consegue ser tão egoísta? Nem mesmo os teus filhos! Nada tem importância pra você, não é, Isabela?

MULHER (OFF)

Se dependesse de mim tinha sido diferente. Nenhum dos dois tinha nascido. Nunca escondi a verdade de ninguém. Sempre fui clara. Você é que insistia. Dizia que queria filhos. Que um casamento sem filhos nunca ia ser uma relação completa.

HOMEM (OFF)

Você é sórdida. Sua vagabunda!

MULHER (OFF)

Por que? Só porque quero levar minha vida? Vagabunda? É isso Cláudio! A partir de agora decidi virar uma vagabunda de verdade.

HOMEM (OFF)

Ainda acabo com você, Isabela!

A TRANSMISSÃO DA NOVELA É INTERROMPIDA POR UM BOLETIM JORNALÍSTICO.

OLGA

Um boletim urgente. Aconteceu alguma coisa.

EUTÁLIA

Silêncio!

LOCUTOR (OFF)

Atenção! Brasília, urgente! O Presidente da República, após reunião de quatro horas com todo o Ministério, acaba de liberar nota oficial autorizando a intervenção federal pelas Forças Armadas, nas áreas de conflito. A operação envolve forças do Exército, Marinha e Aeronáutica, e começa a partir da zero hora. A nota expedida pelo Gabinete da Presidência pede calma à população e...

AS LUZES DA CASA PISCAM ATÉ QUE A TELEVISÃO SAI DO AR. TUDO FICA NO ESCURO. BERTA APARECE NO ALTO DA ESCADA.

BERTA

O que está acontecendo?

EUTÁLIA

Deve ser geral. Desce logo, BERTA! Vou pegar uma vela e já volto.

EUTÁLIA VAI ATÉ À COZINHA ENQUANTO BERTA DESCE AS ESCADAS E FICA JUNTO DE OLGA.

OLGA

Deram uma notícia no meio da novela! O Presidente mandou colocar o Exército na rua.

BERTA

Tenho pavor de escuridão.

OLGA ABRAÇA BERTA LHE FAZENDO CARÍCIAS NOS CABELOS E NO ROSTO.

OLGA

Calma! Estou aqui! EUTÁLIA não vai demorar.

BERTA

Me abraça mais forte. Me protege!

EUTÁLIA VOLTA COM UM CASTIÇAL E UM LAMPIÃO APAGADO. ELA COLOCA O LAMPIÃO EM CIMA DA MESA E TENTA ACENDÊ-LO.

EUTÁLIA

Vou lá embaixo dar uma olhada na mamãe.

OLGA

Eu sabia que as coisas não iam bem. O Exército na rua. Isso lá fora virou uma panela de pressão.

EUTÁLIA

Sem histeria! Não demoro!

EUTÁLIA  DESCE AO PORÃO COM O LAMPIÃO ACESO.

BERTA

Estou com um mal pressentimento. Alguma coisa pode acontecer.

OLGA

Não pensa bobagem! Isso! Me abraça bem forte.

BERTA

Não sei... O mundo anda cada vez mais perdido. As pessoas estão ficando desesperadas. Um dia isso tudo acaba estourando.

OLGA

Não vai ser nada, meu amor!

BERTA

Minhas mãos estão suando, não estão? Quando fico assim as mãos sempre transpiram.

OLGA

Desde criança.

BERTA

Nós brincando de esconder no quintal. Tinha medo que EUTÁLIA me descobrisse. Ela sempre me achava. Eu pedia que você ficasse assim do meu lado. Como agora.

OLGA INTERROMPE BERTA ENCOSTANDO OS DEDOS NA BOCA DA IRMÃ.

BERTA

Tenho medo que nos descubram novamente.

OLGA BEIJA SUAVEMENTE BERTA NA BOCA. EUTÁLIA FAZ BARULHO SUBINDO DO PORÃO E INTERROMPE O BEIJO. BERTA LIMPA A BOCA COM A MÃO.

BERTA

Por que você fez isso?

EUTÁLIA VOLTA. BERTA E OLGA SE AFASTAM UMA DA OUTRA.

EUTÁLIA

Mamãe está dormindo. Deixei o lampião aceso. Se acordar no meio da noite não fica assustada no escuro.

BERTA

O que deve ser isso com a luz, EUTÁLIA?

EUTÁLIA

Como é que eu posso saber!

BERTA

Aquilo que disseram na TV. O Exército nas ruas...

EUTÁLIA

Falta luz e vocês pensam logo que é o fim do mundo. Porque você não aproveita e faz alguma coisa que preste? Toca piano, BERTA! Uma Partita de Bach.

BERTA

Não posso! Minhas mãos não param de tremer.

OLGA

A música pode te acalmar os nervos, BERTA. Vai, toca, meu anjo!

BERTA SENTA-SE AO PIANO E COMEÇA A TOCAR. ERRA A MÚSICA.

EUTÁLIA

Não tem problema! Vai! Tenta novamente!

BERTA REINICIA, MAS ERRA OUTRA VEZ. PÁRA DE TOCAR E COMEÇA A CHORAR.

BERTA

Não consigo! EUTÁLIA faz isso pra me fazer sofrer. Ela me faz mal!

EUTÁLIA DÁ UMA GARGALHADA. OLGA CHEGA PERTO DO PIANO E COLOCA A MÃO NO OMBRO DE BERTA.

OLGA

Eu entendo, meu amor. Lembranças...

BERTA

Não me toca! (tom) Fico vendo mamãe sentada aqui. Todas nós ouvindo em silêncio. Papai ao lado dela. Ele dizendo que mamãe tinha mãos de concertista.

OLGA

Podia ter sido uma grande pianista. Papai sentia tanto orgulho... Nunca me esqueço do piano entrando lá em casa. Mamãe tinha ido às compras. Quando voltou encontrou o piano coberto. Um cartão e uma braçada de rosas em cima. Correu... Foi  procurar as partituras. Tocou horas a fio. Papai dormiu naquela noite ouvindo mamãe tocar.

EUTÁLIA

É melhor  dormir também. Amanhã essa estória se resolve.

BERTA

Não posso ficar sozinha nesse escuro. Ouço vozes, passos...

EUTÁLIA

Tolice! Estamos seguras aqui dentro. Coloco um lampião em cada quarto.

BERTA

Não vou dormir. Só eu sei o que eu tenho passado. Sofro muito. Noites sem pregar o olho um segundo.

OLGA

Fico junto com você, minha querida!

BERTA

Não! Sai de perto de mim! Vou ficar sozinha aqui embaixo. Prefiro ficar sozinha.

EUTÁLIA

Faz como achar melhor. Pouco me importa! Não vou é passar a noite aqui em claro por causa de ninguém. Amanhã tem muito trabalho.

OLGA

Não é melhor olhar mamãe outra vez?

EUTÁLIA

Já disse! Ela está bem. Pra mim chega! Vou subir.

EUTÁLIA SOBE AS ESCADAS. OLGA SE APROXIMA OUTRA VEZ DE BERTA SENTADA AO PIANO.

OLGA

Também vou subindo. Vou rezar um terço pedindo pra Jesus nos proteger. Deixo a porta do quarto encostada. É só entrar.

BERTA

Você nunca devia ter feito aquilo.

OLGA SOBE AS ESCADAS. SOZINHA NA SALA, BERTA VOLTA A ABRIR O PIANO.

BERTA

Mamãe nunca conseguiu tocar essa pra você melhor do que eu, papai!

BERTA COMEÇA A TOCAR “Choro n° 5 - Alma Brasileira”, de Villa-Lobos

FINAL DO PRIMEIRO ATO