2° ATO













A
Última
Chave

                                                  (SEGUNDO ATO)


CENA 4
A luz nunca mais voltou. O calor é insuportável. A casa vive dia e noite mergulhada na penumbra das velas e dos lampiões. Os móveis cobertos por lençóis denunciam o desleixo que aos poucos foi tomando conta de tudo. BERTA, OLGA e EUTÁLIA são o próprio retrato da decadência, vestidas com camisolas, descabeladas, transpirando sujas e desleixadas.


AS TRÊS TRABALHAM NUM VESTIDO DE FESTA LUXUOZÍSSIMO. BERTA CAMINHA COM UM LENÇO NO NARIZ.


BERTA
Esse cheiro está insuportável!

OLGA
Não havia solução, BERTA!

BERTA
Entranha na pele, nas roupas, nos móveis... Não entendo como mamãe tem suportado.

OLGA
(para EUTÁLIA) Tem falado alguma coisa?

EUTÁLIA
Perguntou por papai. Queria saber por que não vinha nunca. Pediu que eu colocasse flores na sepultura de tia Corina.

BERTA
Pobre mãezinha! A solidão é um castigo. Mamãe, que sempre gostou da casa cheia.

EUTÁLIA
Começou a perceber melhor as coisas. Hoje reclamou da comida sem sal. Falei da pressão. Expliquei que não podia exagerar no sal.

BERTA
Será que um dia ela vai poder sair?

EUTÁLIA
Eu não falei em sair. Vai ficar o tempo que for preciso, BERTA!       

OLGA
Tenho tanta saudade!

BERTA
Não vejo a hora dela voltar.

OLGA
Deus queira que eu ainda tenha tempo de ver mamãe novamente!  Minha vista anda cada dia pior.

BERTA
Pobre OLGA!

OLGA
Não consigo mais ler a Bíblia com aquelas letras pequenas. Só vejo vultos. Peço à Deus pra não me tornar um fardo pesado demais.


ALGUÉM BATE À PORTA.


EUTÁLIA
Silêncio! Alguém bateu na porta!

BERTA
Quem pode ser?

EUTÁLIA
Inferno! Podem nos ouvir.


A PESSOA DESISTE, DEPOIS DE INSISTIR REPETIDAMENTE.


EUTÁLIA
Acho que desistiu.

BERTA
O que é aquilo? Botaram alguma coisa debaixo da porta.


EUTÁLIA E BERTA SE APROXIMAM DA PORTA. BERTA PEGA UM ENVELOPE NO CHÃO.


BERTA
Um envelope!

OLGA
Deve ser daquela ordinária.

EUTÁLIA
Fala baixo! (tom) Não é possível. Ela sabe que não é pra chegar perto dessa porta. Nunca deixou de pegar e entregar as coisas,  certinho onde eu sempre mandei. Só no portão de serviço ninguém consegue ver nada da rua.

OLGA
Quem então?

EUTÁLIA
Miséria! Como é que eu posso saber?


EUTÁLIA SE APROXIMA DA LUZ.


EUTÁLIA
Uma ordem judicial. (tom)  Imunda! Eu sabia!

OLGA
Pelo amor de Deus! Fala logo, EUTÁLIA!



EUTÁLIA
A desgraçada não paga o aluguel há quatro meses. Por isso não manda os recibos. Cobrança judicial! Mandam pagar tudo em 48 horas.

OLGA
Com que dinheiro, EUTÁLIA?

EUTÁLIA
Não sei! Não sei! Preciso pensar um pouco!

BERTA
Vão nos botar na rua!

EUTÁLIA
Cala essa boca!


EUTÁLIA PEGA O CADERNO NO ARMÁRIO E SENTA À MESA.


EUTÁLIA
Tenho tudo o que ela me deve anotado.


EUTÁLIA  FOLHEIA O CADERNO PERTO DO CASTIÇAL,  OBSERVADA COM EXPECTATIVA POR OLGA E BERTA.


EUTÁLIA
Na mesma época da luz. Safada!.

BERTA
Ninguém veio até agora pegar o vestido.

OLGA
Essa hora ninguém mais aparece.

BERTA
Sabia que isso ia acabar acontecendo. Tive um pressentimento quando cortaram a luz naquela noite.

OLGA
Vão nos despejar dessa casa! Se mamãe souber disso morre!

BERTA
Essas velas...

EUTÁLIA
Podem calar a boca? Assim eu não consigo pensar! (pausa) Vou lá fora!

BERTA
Fazer o que lá fora?

EUTÁLIA
Ter certeza de que ninguém veio apanhar o vestido.

OLGA
Cuidado, EUTÁLIA! O oficial ainda pode estar por perto.

EUTÁLIA
Só faltava essa! Você querendo me ensinar agora o que eu devo fazer.


EUTÁLIA RETIRA A BARRA DE FERRO, ABRE A PORTA E SAI.


OLGA
Deixamos que essa vagabunda desse as cartas. Nem EUTÁLIA percebeu nada. Era uma armadilha!

BERTA
Passei aquela noite toda em claro aqui nessa sala. Não parei de tocar um minuto. 

OLGA
Como pôde ter coragem? Nunca deixou de receber um vestido em dia. Sempre exatamente como ela queria.

BERTA
Você o tempo todo falando em Deus... E nós ao lado do demônio.


EUTÁLIA ENTRA COM O PACOTE DO VESTIDO. BERTA VAI ATÉ À PORTA E PEGA O PACOTE. EUTALIA TRANCA A PORTA E RECOLOCA A BARRA DE FERRO.


EUTÁLIA
Nada! Achei melhor trazer o vestido de volta. Tenho que achar uma saída.

BERTA
E a comida? A comida está acabando.

EUTÁLIA  PEGA O CADERNO NO ARMÁRIO E TIRA UM PAPEL DE DENTRO.

EUTÁLIA
Encontrei um dia esse bilhete junto com as contas. Era dela. Diz que o marido tem uma doença grave. Câncer de pulmão. É melhor não se precipitar. Quem sabe se não foi internado às pressas?

OLGA
Não tenho mais razão nenhuma para acreditar nessa mulher, Eutália  E quanto ao resto? Por que não traz as coisas que você pede nas listas? A troco de quê essa quantidade de velas e querosene? E agora o aluguel?

BERTA
OLGA tem razão, EUTÁLIA! Ela tramou tudo isso.

OLGA
E a comida? Quer nos matar de fome. A quantidade que ela manda não dá pra nem um prato decente por dia. Mamãe ainda está fraca. Precisa se alimentar melhor.

BERTA
Olha! Estou definhando.

EUTÁLIA
Vocês têm razão!  Confiei demais nessa mulher.

OLGA
Ninguém podia imaginar.


EUTÁLIA
Preciso esperar mais um pouco. A tal estória do marido.

BERTA
Por que uma de nós não vai atrás dela? Você, EUTÁLIA! Descobre de vez a verdade. Cobra o que nos deve. Ao menos os aluguéis.

EUTÁLIA
Você ficou louca! Ninguém tem idéia de como estão as coisas lá fora. E se acontece alguma coisa comigo? Vão cuidar de tudo aqui sozinhas.

OLGA
É arriscado demais! Sem EUTÁLIA...  Nós duas estamos perdidas. Quem ia tratar de mamãe? Estou quase cega. BERTA sofre dos nervos.

BERTA
Eu posso ir!

EUTÁLIA
(gargalhada) Ir até a esquina chamar a polícia? Contar nossa estória?

BERTA
Alguém pode nos ajudar. Ainda existem pessoas boas.

EUTÁLIA
Vai contar ao primeiro infeliz que passar que a mulher do Senador Olegário Vilella é uma trambiqueira sem vergonha?  Não vou deixar ninguém nos humilhar de novo. (tom) Preciso ficar um pouco sozinha pra pensar.


EUTÁLIA SOBE A ESCADA. BERTA SE APROXIMA DE OLGA.

BERTA
Já sei como eu vou conseguir esse dinheiro.

OLGA
Como!

BERTA
A pulseira e os brincos de ouro. Mamãe dizia que podiam servir numa emergência. Chegou a hora!

OLGA
EUTÁLIA não vai concordar nunca com isso.

BERTA
Ela não vai saber de nada.

OLGA
Eu não vou deixar você fazer essa loucura!

BERTA
Você não tem escolha, OLGA. Ou vai querer que EUTÁLIA fique sabendo dos carinhos que você faz em mim?

OLGA
Você não ia ter coragem!

BERTA
Ela anda distraída. Não carrega mais as chaves o tempo todo como fazia antes. Eu entro no quarto e digo que você está passando mal. É o tempo de abrir a caixa das jóias que ela guarda na mesinha. Dois minutos. Você segura ela aqui em baixo. Dois minutos!


BERTA SOBE AS ESCADAS. EUTÁLIA DESCE COM BERTA. OLGA FINGE QUE TEM UMA CRISE DE FALTA DE AR.


EUTÁLIA
O que você está sentindo?

OLGA
Não sei. Começou de repente!

BERTA
Eu vou lá em cima pegar uma ventarola. Ela está precisando de ar.


BERTA SOBE NOVAMENTE.


EUTÁLIA
Respira fundo! Isso. Só me faltava essa agora!

OLGA
Um pouco d’água!

EUTÁLIA
Onde está aquela lesma? Espera! Eu vou pegar na cozinha.


EUTÁLIA VAI ATÉ A COZINHA.


OLGA
Ela vai acabar desconfiando! E BERTA que não volta, meu Deus!


EUTÁLIA VOLTA COM O COPO D’ÁGUA.


EUTÁLIA
Botei um pouco de açúcar. Isso é nervoso! Fica calma! (tom) Tudo tem conserto. Pensa comigo: se a tal estória do marido é verdade, se foi mesmo internado e morre, vai precisar de um vestido. O corte preto!

OLGA
Sei...

EUTÁLIA
Talvez por causa disso nunca nos mandou o feitio. Tem linha preta em casa, não tem? Fazemos um vestido. Vai precisar de um vestido preto se o marido morrer, não vai?

OLGA
E o feitio...?

EUTÁLIA
Você não vive dizendo que eu herdei as mãos de mamãe? Chegou a hora de provar que é verdade!

EUTÁLIA VAI ATÉ O ARMÁRIO E PROCURA PELO MOLHO DE CHAVES NOS BOLSOS DA CAMISOLA .


EUTÁLIA
Esqueci as chaves lá em cima.


EUTÁLIA FAZ MENÇÃO DE SUBIR.


OLGA
Espera um pouquinho mais. Só um pouquinho... até eu melhorar.

EUTÁLIA
É isso!  O marido morreu. É a nossa chance de virar o jogo. Não posso abandonar essa cliente agora. Não vai ficar sem vestido no enterro do marido.

BERTA COMEÇA A DESCER AS ESCADAS COM UMA VENTAROLA NA MÃO. ELA SE APROXIMA DE OLGA E COMEÇA A ABANAR A IRMÃ.

EUTÁLIA
BERTA fica com você, OLGA!


EUTÁLIA VAI ATÉ O QUARTO PEGAR AS CHAVES.


OLGA
Conseguiu?

BERTA

As jóias sumiram. Não estão mais na caixa. Tinha só umas fotos de papai.

OLGA
É melhor você esquecer isso!  EUTÁLIA acaba descobrindo.

BERTA
É estranho, não é? Onde foram parar essas joias.

OLGA
Ela está vindo aí!


EUTÁLIA DESCE A ESCADA COM AS CHAVES.


OLGA
Estava contando à BERTA a ideia do vestido preto. BERTA achou ótimo, não é BERTA?

BERTA
Ótima ideia. Uma ideia perfeita!


EUTÁLIA ABRE O ARMÁRIO E PEGA O CORTE PRETO.


EUTÁLIA
É melhor não demorarmos com isso.

BERTA ABRE O TAMPO DA MÁQUINA DE COSTURA E COMEÇA A REBOBINAR UMA CARRETILHA USANDO O PEDAL MECÂNICO. OLGA VAI APAGANDO AS VELAS UMA A UMA. EUTÁLIA ABRE O CORTE PRETO NUM GESTO QUE FAZ O TECIDO DANÇAR NO AR. OLGA SOPRA AS ÚLTIMAS VELAS DO CASTIÇAL E A SALA MERGULHA NA ESCURIDÃO



CENA 5

COMEÇA UM GRANDE TIROTEIO NA RUA. OLGA E BERTA SURGEM SEGURANDO UM LAMPIÃO NO ALTO DA ESCADA . ELAS DESCEM ASSUSTADAS ATÉ A SALA.

OLGA
Meus Deus! O que é isso?  Nunca foi tão forte assim.

BERTA
Virou guerra!


EUTÁLIA APARECE NO ALTO DA ESCADA COM UMA VELA.


OLGA
Estamos perdidas, EUTÁLIA!

EUTÁLIA
Não quero estória! Vou tentar descobrir alguma coisa.

EUTÁLIA SAI.


OLGA
Ave Maria cheia de graça, Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria mãe de Deus, rogai por nós os pecadores, agora e na hora da nossa morte, Amém. (prossegue)

BERTA
É tiro de metralhadora.


EUTÁLIA APARECE NOVAMENTE NO ALTO DA ESCADA E COMEÇA A DESCER.


EUTÁLIA
Pára com essa rezaria, OLGA! Eu não suporto mais isso!

BERTA
Viu alguma coisa?

EUTÁLIA
Pela fresta da janela. É o Exército cercando as ruas de trás.

BERTA
Essa casa toda fechada... Pensam que está abandonada. Vem se esconder dos soldados aqui dentro. Igual ao sonho. Nós presas e amordaçadas.

OLGA
Minha Virgem Santíssima! As facas!

EUTÁLIA
Deixa de ser ridícula! Não quero cena!

BERTA
Está aumentando, EUTÁLIA! A gente precisa fazer alguma coisa. Mamãe deve estar apavorada lá embaixo com esse tiroteio.

EUTÁLIA
O barulho não vai até lá. (tom) Eles estão atirando contra quem?

OLGA
Deus queira que mamãe esteja dormindo!

BERTA
Sozinha... Esses tiros naquele porão... Pode começar tudo de novo.

OLGA
BERTA tem razão. Os remédios acabaram.

EUTÁLIA
Merda! Já disse que não dá pra ouvir nada lá dentro!


UMA FORTE EXPLOSÃO.


BERTA
O que foi isso? Uma bomba não foi?

OLGA
Foi uma bomba, não foi, EUTÁLIA!

BERTA
Vamos morrer!

OLGA
Deus não pode nos abandonar!

EUTÁLIA
Calma!

BERTA
Se a televisão funcionasse... Só pra saber o que está acontecendo.

OLGA
Guerra civil! Deve haver gente ferida, gente morta pela rua.

EUTÁLIA
Não aguento mais vocês!

OLGA
Ave Maria cheia de graça...

OLGA/BERTA
... Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto...

EUTÁLIA
Silêncio! Está diminuindo.

AMBULÂNCIA COM SIRENE PASSA EM FRENTE À CASA.


BERTA
Ambulâncias. OLGA tinha razão! Tem gente morta!

OLGA
Que mundo é esse, meu Deus?

EUTÁLIA
Espera aí! Os tiros estão parando.

OLGA
Deus ouviu minhas preces!

EUTÁLIA
Parou!

BERTA
A gente não vale mais nada.

OLGA
Sinto tanta falta do papai nessas horas.

EUTÁLIA
Acho uma graça! Pra quê? Papai era um banana!

BERTA
Não fala assim dele!

OLGA
Deixa pra lá, BERTA!

BERTA
O homem que eu conheci era um sonhador.

EUTÁLIA
Na cama também?

OLGA
Ela quer te provocar! Não responde nada!

BERTA
No fundo você queria estar no meu lugar, não queria, EUTÁLIA?

EUTÁLIA
Vagabunda!

BERTA
Você pensa que eu nunca notei?  O jeito como você olhava pra ele! Quanta intriga com a mamãe! Você jogando sempre o teu veneno pra separar os dois. 

EUTÁLIA
Cala essa boca! Ou te meto a mão na cara, sua piranha!

BERTA
Mete! Vai! Mete, santinha!



EUTÁLIA
Você vai acabar ficando louca que nem ela. Mas com você vai ser diferente. Não vou mexer nenhuma palha. Você vai apodrecer sozinha.


BERTA TIRA DE DENTRO DE UM SUTIÃ UM PEDAÇO DE PAPEL E O MOSTRA PARA EUTÁLIA.

BERTA
Você sabe o que é isso? É a prova de que nenhuma de nós três presta.

EUTÁLIA
Você ficou maluca!


BERTA COMEÇA A LER O PAPEL.


BERTA
“Duas semanas que você morreu, papai. Nunca pensei que você doer tanto. Porque eu também não pude ter você? Mamãe e BERTA nunca te mereceram...

EUTÁLIA
De onde saiu isso?

BERTA
Da caixa onde você guardava as joias que sumiram.

OLGA
Não, OLGA! Isso não é coisa que se faça. Que os mortos descansem em paz!

EUTÁLIA
Vocês duas me traindo! Me dá isso aqui, sua cadela traiçoeira!


EUTÁLIA PARTE PARA CIMA DE BERTA E PEGA O PAPEL.


EUTÁLIA
Olha pra mim! Você foi longe demais!

BERTA
Nega! Tenha coragem! Nega na minha cara, EUTÁLIA!


EUTÁLIA DÁ UMA BOFETADA SECA EM BERTA. SILÊNCIO. EUTÁLIA SE AFASTA DOBRANDO O PAPEL.


BERTA
Não vou me esquecer nunca daquele dia. Foi ali que ele começou a morrer. Eu sei. Você metendo o chicote em mim. Minhas costas sangrando. Você espumava de prazer, EUTÁLIA. Até que ele te meteu a mão mandando você parar. Você nunca devia ter falado daquele jeito com ele. Aquilo era assunto de mulher. Não era coisa pra um homem honesto ouvir da boca de uma filha.  Papai morreu de vergonha.  Por tua causa!



EUTÁLIA
Um homem que vivia de sonhos... Nunca passou de um lunático. Tanto desamparo... Só queria saber daqueles pássaros dele no viveiro.

OLGA
Nunca nos faltou nada.

EUTÁLIA
Um homem de verdade não fazia o que ele fez. Não pensou em nenhuma de nós. Meses de agonia naquele hospital imundo. Morrendo aos poucos como uma planta. Quanto mamãe não sofreu tendo que esconder a verdade? Visitas proibidas!  E todo mundo acreditando em tuberculose. Que mentirada!

OLGA
Não vamos lembrar disso, EUTÁLIA!

EUTÁLIA
Sempre foi um covarde. Não teve coragem nem mesmo na hora de se matar. Lembro dele abrindo a porta do banheiro, implorando,  pedindo clemência,  se arrastando pelo chão como um verme. Três meses em coma naquela pocilga nojenta.

OLGA
EUTÁLIA! BERTA não pode...

EUTÁLIA
Suicídio? Existem coisas piores que o suicídio. Mamãe teve que mendigar favores pra comprar um caixão de quinta. Uma cova rasa. Nós perdemos tudo. Nem comida tinha em casa. Ela num canto calada, vendo um rapazola pegar os passarinhos e levar tudo embora. Uma vida inteira de sonhos jogada numa gaiola. Tudo vendido sem passado numa feira livre qualquer. Aquilo foi só o começo. Um pesadelo que nunca mais teve fim. Os móveis, os cristais, a prataria... tudo vendido como xepa por alguns cruzeiros. No dia da mudança, a viúva do general dizendo que castelos mais altos tinham ruído. Por que não o nosso?

OLGA
(para BERTA) Vem cá, meu anjo.


OLGA FICA ABRAÇADA COM BERTA.


BERTA
Eu só quero que ele descanse em paz!

OLGA
Meu Deus do céu! Por que tanto desamparo?

EUTÁLIA
Os tiros pararam. Daqui a pouco amanhece. É melhor dormir.

BERTA
Não! Não vamos dormir ainda! Vou tocar alguma coisa. Uma música que mamãe gostasse de ouvir.


BERTA VAI ATÉ O PIANO.



OLGA
Já é tarde. EUTÁLIA tem razão.

BERTA
Porque não passamos a noite aqui juntas? Uma do lado da outra!

EUTÁLIA
Dorme você no chão, feito um bicho!

BERTA
Só esta noite, EUTÁLIA! Você fica no sofá. Eu e OLGA nos ajeitamos em qualquer canto. Não é, OLGA?


BERTA COMEÇA A TOCAR “Variação N° 1, de Bach”


OLGA
Fico junto de você, meu anjo.

EUTÁLIA
Você me dá nojo, OLGA. Lésbica! 

OLGA
(para BERTA) Não me importa o que ela está dizendo. Continua tocando! Sempre foi assim. Minha criança... Meu anjo... Não vou te deixar aqui sozinha! Pode subir, EUTÁLIA!

EUTÁLIA
(gritando) Para essa música!

BERTA PARA DE TOCAR. OLGA ACARICIA OS CABELOS DE BERTA.


OLGA
(para BERTA) Ela está perdendo o controle. Precisa de ajuda.

EUTÁLIA
Quem me ajuda quando eu preciso? Você, OLGA? Ou é a BERTA quem resolve meus problemas? Existe um limite. Não ultrapassem! Tudo tem sido pesado demais. E vocês duas... me dão vontade de vomitar!

BERTA
Preciso que você me ajude, OLGA! EUTÁLIA não entende. Eu preciso tocar alguma coisa pra ele. Minha cabeça... mamãe... o suicídio de papai... Por favor, não saia do meu lado!

OLGA
Toca, meu amor! Eu não vou sair daqui. 


BERTA RECOMEÇA A TOCAR.


OLGA
(para EUTÁLIA) Você não tem esse direito! Eu vou passar a noite aqui com ela. É desumano abandonar uma pessoa assim.


EUTÁLIA
Vão dormir abraçadas como faziam quando garotas?


EUTÁLIA COMEÇA A SUBIR AS ESCADAS.


OLGA
Deus não vai te perdoar por isso! Não vai, EUTÁLIA!


EUTÁLIA SAI. BERTA PÁRA DE TOCAR E LEVANTA.


BERTA
Fico com medo que ela vá embora. Onde ela enfiou aquelas joias?


BERTA E OLGA SENTAM NO SOFÁ.


OLGA
Não diz mais nada! Encosta a cabeça aqui! Faço igual a quando você era pequena. (CANTA) “Au clair de la lune, mon amie pierrot. Prete-moi ta plume, pour écrire un mot. Ma chandelle est morte, je n’ai plus de feu. Ouvre-moi ta porte, pour l’amour de Dieu”.


OLGA APAGA AS VELAS.






CENA 6

EUTÁLIA, BERTA ESTÃO TERMINANDO DE FAZER O VESTIDO PRETO. AO INVÉS DE USAREM O MANEQUIM, DÃO OS RETOQUES FINAIS NO CORPO DE EUTÁLIA, QUE MODELOU O VESTIDO NO SEU PRÓPRIO CORPO.


EUTÁLIA
É preciso andar rápido com isso!

BERTA
Coitada! O dinheiro nessas horas não vale nada. A dor da morte é igual pra todo mundo.

EUTÁLIA
Ela pode chegar a qualquer minuto.


OLGA SAI DA COZINHA E ENTRA NA SALA.


OLGA
Já botei a água do café pra ferver.

BERTA
Enterro de político. Celebridades, representantes da igreja, montanhas de coroas... Com papai foi tão diferente! Nem teve padre pra encomendar o corpo.

OLGA
O vestido! Fizemos com tanto cuidado. O vestido de uma viúva precisa ser tão bem feito quanto o de uma noiva.

EUTÁLIA
Não fui só eu quem herdou as mãos de mamãe. Estão vendo? Precisamos umas das outras. Fizeram tudo praticamente sozinhas. Só servi de modelo. Impecável! Não imaginam o conforto. Cada detalhe perfeito. Assim que mamãe ficar boa, arranjo mais clientes. Essa não nos serve mais. Já provou não ser de confiança.

OLGA
Se Deus quiser! Mamãe vai voltar logo. Nada preenche esse vazio.

BERTA
No fim do ano mamãe faz oitenta anos. Podemos dar uma festa. Um bolo confeitado, flores... Posso tocar umas valsas. Mamãe adora as valsas de Strauss. Convidamos algumas amigas...

OLGA
Não! Fariam perguntas. Ficamos só as quatro. Mamãe pode não gostar de gente estranha em casa.

EUTÁLIA
Vamos ficar todas juntas outra vez.


EUTÁLIA DÁ ALGUNS PASSOS DESFILANDO COM O VESTIDO.



EUTÁLIA
Ficou lindo! Não ficou?

BERTA
Uma joia! Não é, OLGA? (reflete) Não tenho conserto!

OLGA
Bobagem. Acabo me acostumando. Vou ter que me acostumar de qualquer jeito. Até quando vou conseguir ajudar vocês na costura? Tenho certeza que esse é o mais lindo de todos.

EUTÁLIA
Pronto! Agora é só esperar aquela safada pegar o vestido.

OLGA
Essa mulher pode acabar não vindo!

EUTÁLIA
Claro que vem! (tom)Tenho um presente guardado. Depois de tanto esforço a gente merece. Um punhado de erva-doce.

BERTA
Tomar chá?

EUTÁLIA
Não é uma boa idéia?

BERTA
Isso me traz lembranças boas! Nós em volta da mesa.  A toalha da Ilha da Madeira, o serviço chinês, os biscoitinhos de nata... Mamãe moldava cada biscoito como se fosse uma escultura.

OLGA
Nunca deixou de fazer nosso chá. Mesmo nos piores momentos.

BERTA
Onde você guardou? Preparo num minutinho.

EUTÁLIA
Não! Vocês já trabalharam muito por hoje. Eu preparo.

BERTA
Não vai se meter agora na cozinha com esse vestido! Pode sujar, EUTÁLIA!

EUTÁLIA
Pelo tempo que OLGA botou a água, já deve estar fervendo. É rápido!

EUTÁLIA SAI.

BERTA
Ontem, EUTÁLIA me deu medo. Fiquei com a cabeça cheia de ideias tolas.

OLGA
É. Toda família é assim.

BERTA
Vamos dar um jeito nessa mesa. Não dá pra sentar nessa bagunça.

OLGA
Vamos fazer uma surpresa! A toalha e os guardanapos de crivo... Estão guardados ali! Naquela gaveta.

BERTA PEGA A TOALHA E OS GUARDANAPOS NA GAVETA.


BERTA
Tanto tempo! Ficou tudo manchado. Acabou como nós.

OLGA
Nessa penumbra ninguém percebe.


BERTA ESTENDE A TOALHA E ARRUMA OS GUARDADOS NA MESA.


BERTA
Se pudesse ir até o jardim! Ontem senti do quarto o jasmim florescendo lá fora. Fazia um arranjo. Colocava no meio da mesa. Esse cheiro horrível pela casa toda...!

OLGA
Também fiquei assustada com EUTÁLIA. Todo mundo tem seus dias. Ela não pensa nada daquilo. As palavras às vezes saem sem maldade.


EUTÁLIA ENTRA COM A BANDEJA DE CHÁ.


OLGA
O que ia ser de nós sem você, EUTÁLIA?


EUTÁLIA
Mesa posta! A vida é feita desses pequenos prazeres.

BERTA
Só falta mamãe!

EUTÁLIA
Quero passar uma esponja naquela estória de ontem. Nada de coisas tristes. Vamos aproveitar o que a vida ainda pode nos dar de bom. A única coisa importante é que estamos aqui as três, juntas nesta casa, protegendo mamãe. À saúde de mamãe!


AS TRÊS ERGUEM SUTILMENTE AS TAÇAS.


BERTA
Nunca te vi tão bonita. Dá orgulho te admirar nesse vestido. Uma luva.

OLGA
Se não fosse pela morte do tal Senador, EUTÁLIA devia ficar com ele.

BERTA
Esse brilho nos teus olhos... Não vejo você alegre assim há tanto tempo!

OLGA
Pena que não tem bolo.

EUTÁLIA
Estou me sentindo aliviada.

OLGA
Que horas devem ser? (silêncio) Assim que mamãe ficar boa quero abrir, eu mesma, todas essas portas e janelas. Vou olhar o sol de frente.

BERTA
Ainda é cedo.

EUTÁLIA
Tomei hoje uma decisão importante. Sobre os vestidos.

OLGA
Precisamos mesmo arranjar outras clientes.

EUTÁLIA
Não vão haver outras clientes. Esse foi o último.

BERTA
Como não? É a única coisa que sabemos fazer.

EUTÁLIA
Não vai mais ser preciso.

OLGA
Que brincadeira é essa? Você mesma acabou de dizer... Assim que mamãe voltar vai procurar outras clientes.

EUTÁLIA
Não percebem? Tudo não passa de um jogo. Foi a mesma coisa quando papai se trancou naquele banheiro. Lembram? Naquela manhã estávamos assim. Tomando café  ao lado ele. Ninguém foi capaz de perceber nada.

OLGA
Continuo não entendendo.

EUTÁLIA
Depois foi a vez de mamãe. Também não vimos nada quando saiu nua de casa. Depois os vizinhos fazendo pouco de nós... chacotas, piadinhas porque mamãe perdeu a vergonha. Não vou deixar que essas coisas aconteçam nunca mais.

BERTA
Espera, OLGA! Acho que estou entendendo o que ela quer dizer.

EUTÁLIA
Você nunca foi burra, BERTA. Só uma mulher inteligente ia conseguir tirar de um homem o que você tirou do papai.

OLGA
Eu não estou entendo nada. Deve ser sono.

BERTA
Continua, EUTÁLIA! Vai em frente!

EUTÁLIA
A vida é cheia de surpresas. Às vezes se acredita em verdades que não existem. É!  A verdade pode não passar de ilusão. Ela é nua. É fria e desfigurada. Vocês podiam partir sem saber de nada. De absolutamente nada.

BERTA
Partir?

OLGA
Não consigo...

BERTA
O chá!


BERTA DEIXA A XÍCARA CAIR NA MESA. EUTÁLIA DÁ UMA GARGALHADA. OLGA JÁ MOSTRA SINAIS DE COLAPSO.


OLGA
O que foi isso?

BERTA
Eu não sinto as mãos. O que você botou nesse chá?

EUTÁLIA
Não está bom?

BERTA
Ela colocou alguma coisa nesse chá, OLGA!

EUTÁLIA
Se eu fosse vocês não me esgotava tanto. Ficava quietinha. Ouvia o que eu tenho pra contar. O tempo é curto! Ou não querem saber o que aconteceu?

BERTA
Ela botou veneno, OLGA!

BERTA LEVANTA E TENTA VOMITAR.


OLGA
Meu anjo...! As palavras estão fugindo... EUTÁLIA não ia fazer isso!

BERTA
Não!

EUTÁLIA
Menti quando disse que mamãe ia ficar boa. Acabou sendo um acidente. Exagerei demais nas doses.

OLGA
Sabemos que você... você... cuida... muito bem de mamãe.

BERTA
Ela matou a mamãe!

EUTÁLIA
Entrou em choque na primeira picada. Ainda ficou viva um tempo. Os olhos abertos, os dentes cerrados....Depois apliquei a outra. Morreu sem sofrer!

BERTA
Meu corpo... está... dormente. Minha cabeça... Assassina!

OLGA
Eu...



EUTÁLIA
Não perceberam nada. Foi tão fácil! A idéia do cachorro foi perfeita. Inventei a estória da raiva. Me livrando do animal explicava o cheiro podre. Ficou tudo mais fácil ainda.


OLGA TOMBA EM CIMA DA XÍCARA. BERTA CORRE CAMBALEANDO ATÉ ELA.


BERTA
Ela está morrendo! Assassina!

EUTÁLIA
Já foi, coitada! Sobramos eu e você.

BERTA
Por que...?


BERTA TENTA CHEGAR ATÉ A PORTA.


BERTA
Você conseguiu...! Imunda...! Conseguiu, EUTÁLIA!


BERTA CAI MORTA AO LADO DA PORTA.



EUTÁLIA
Minhas pobres irmãs! Dormiram! As xícaras ainda estão mornas. Mas não ouvem mais a nossa estória. Acorda, BERTA! Levanta, OLGA! Vamos até o porão colocar flores junto ao corpo de mamãe? (gargalhada) 


EUTÁLIA DESTRANCA O ARMÁRIO E PEGA UMA CAIXA ESCONDIDA NO FUNDO.


EUTÁLIA
Ou será que depois de tanto tempo mamãe ainda está viva? Pobres estúpidas! O veneno nem acabou de lhes perfurar o estômago... Ainda corre nas veias a ignorância da própria morte.


ELA VAI ATÉ A MESA E COM OUTRA CHAVE ABRE A CAIXA. TIRA DE DENTRO O COLAR E OS BRINCOS DA MÃE.


EUTÁLIA
Tanta indiferença! Esta clausura sem perguntas... É patético! Sem desavença, sem controvérsia, sem lamúrias... Só resignação! Vidas vazias como estas xícaras.


EUTÁLIA COLOCA AS JÓIAS.




EUTÁLIA
Esta casa ancorou nossos medos tantos anos. Agora vai guardar esses corpos. As moscas... Esta casa...

RETIRA APENAS UMA CHAVE DO MOLHO.

EUTÁLIA
Minhas chaves... Tantas chaves! Quantos anos carreguei esse peso?

JOGA O MOLHO DE CHAVES SOBRE A MESA.

EUTÁLIA
Vocês tinham razão! Este vestido agora é meu. Nunca mais vou me separar dele. Nunca mais! (gargalhada)

EUTÁLIA CAMINHA ATÉ A PORTA PRINCIPAL, TIRA O VESTIDO E FICA NUA. ENQUANTO OBSERVA O AMBIENTE, ELA SEGURA O VESTIDO CONTRA O CORPO. EUTÁLIA TIRA AS JÓIAS E COLOCA DENTRO DO VESTIDO.

EUTÁLIA
Essa casa. Nossas promessas. Fidelidade. Nosso convívio menor. Morreu tudo. Tudo!

EUTÁLIA CONTEMPLA A CHAVE NAS MÃOS E ABRE A PORTA. UM FORTE CLARÃO VEM DE FORA DA CASA. EUTÁLIA SAI E FECHA A PORTA.      

FIM



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